Categoria: Livros

  • Oourodooutro

    oourodooutro reúne poemas que cobrem 26 anos. Muitos deles foram publicados originalmente em blogues e sites, ou mesmo no Facebook. A decisão de reuni-los em livro deveu-se ao recrudescimento de ações autoritárias, com a intransigência e o conservadorismo que vão crescendo no Brasil.O livro quer se uma ação que se oponha à maneira pouco reflexiva como questões sérias e complexas da sociedade passaram a ser objeto de disputa de opiniões, quase sempre agressivas e violentas, mas sem disposição para enfrentar os problemas com a complexidade de um pensamento que aborde as contradições e as dificuldades que lhe são inerentes.Os poemas não apresentam claramente uma posição partidária. Refletem mais as complexas contradições da sociedade brasileira. Apesar da extensão temporal do período de criação dos poemas, o livro guarda uma unidade, quer pelo aspecto temático, quer pela maneira como torna central a questão da alteridade. Daí o título, oourodooutro, que, se por um lado remete ao processo de exploração colonial do Brasil, por outro indica esse valor especial que existe na alteridade, mas sem negar a dificuldade que é minerá-la. Os poemas, então, vistos no conjunto, assumem várias vozes, ora de oprimidos, o pobre, o índio, o negro, a mulher, ora de opressores, dentre os quais não deixa de estar o próprio poeta e escritor que se dispõe a representá-los, com uma linguagem inevitavelmente demarcada como branca, masculina, heteronormativa, que caracteriza a tradição literária brasileira. Isso expõe as contradições e cria uma espécie de mosaico polifônico.Visualmente, o livro busca uma linguagem mais suja, mais e sujeita a interferências gráficas. A edição obtém esse efeito (que o próprio título representa por juntar tudo numa única palavra) através do desrespeito às margens, à mancha gráfica e ao próprio limite da página. Além disso, incluí manuscritos que seriam capazes de criar esse efeito visual, mas que também dialogam tematicamente com o livro.

  • Mercado de engenhos

    Este é um livro de poesias que contém um ensaio, intitulado “Vida suspensa”. A obra, como um todo, encerra uma reflexão sobre como o corpo que respira, dissolve-se e esgota-se no fluxo das mercadorias. Trata-se dos corpos de imigrantes, negros, mulheres, LGBTTQIA+, indígenas e de todos os que ameaçam o projeto branco e neoliberal pela simples manifestação da sua alteridade.É possível que o título Mercado de engenhos leve o leitor a pensar nos engenhos de cana da época do Brasil colônia. Não estamos muito longe disso. Por trás do projeto colonial, expansionista, capitalista, há também máquinas de moer corpos, com a exploração, a escravização e o extermínio de outros povos. Mas esse livro reflete também a criatividade, a engenhosidade humana (inclusive a artística) que pode ser usada para tornar mercantilizável o nosso corpo, a nossa forma de estar no mundo. Transformamos em mercadoria tanto as pinturas de natureza-morta (em que há a exposição de um corpo vivo, flores, frutas, carnes, que acabam apodrecendo se a exposição for muito demorada), quanto técnicas de meditação (que consistem em voltar-se absoluta e unicamente para o corpo, a matéria que nos coloca no aqui e agora, num processo de esvaziamento de mente, das ideias e dos pensamentos). Essas e outras reflexões estão no livro de Alexandre Faria. que culmina na apresentação de um corpo erótico, sonoro, dançante, saída possível, transgressora, libertária e resposta inquietante às crises do mundo contemporâneo.

  • Cosmologia do impreciso

    É um desafio lúdico acompanhar as rotas traçadas por oswaldo martins em sua poesia, com intertextos que cada poema instaura, não só com a literatura, mas também com a pintura, o cinema, a música, e toda forma de arte. E isso sem hierarquizar o erudito ou o popular, o nacional ou o estrangeiro. O que coloca o poeta num lugar ideologicamente privilegiado e intelectualmente livre. Nessa arte, liberdade é fundamental, pois, para além do vasto diálogo com a cultura, o poeta também se ocupa de insuflar a inquietação dos metafísicos. A aporia que cinde o humano em corpo e espírito (seja o santo ou o das luzes) é combatida em nome da liberdade e da afirmação irrefutável da vida. Cosmologia do impreciso consagra e define a cosmovisão da poesia de oswaldo martins. Nela, a vida e a liberdade são reafirmadas através do erótico, em sua fortuitidade mais (ex-/im-)pulsiva: a buceta, sintomaticamente grafada com u, ratificando o gesto transgressor, a sedição da poesia. “Dobradura-porta/aberta ao absurdo”, como diz a “antimetafísica das apreciações”, é a buceta, mas também são os quadros e livros que “buscam/o que de buceta/são”. Trata-se de uma cosmologia, de uma “origem do mundo” digna do famoso quadro de Gustave Courbet. A imagem funda um jogo complexo em que as ideias de nascer e gozar, entrar e sair, circulam, do livro para a vida, da vida para o livro. Entre por ali, então, o leitor: pela constatação de que é entre os corpos que a vida se consuma, e que a utopia da poesia, da arte, enfim, é menos alimentar o espírito que tocar esse impreciso viver.

  • Rebute

    O livro Rebute de André Capilé propõe ao leitor um complexo e sutil jogo no qual proposição e recepção buscam sempre iniciar um adiamento do tempo que se quer insabido quando se anuncia que o pré-sabido do uso comum da linguagem se transtorna e se transforma na deriva poética do autor.

  • A pele oculta das vogais

    Eilá está diante de uma janela sem grades do sétimo andar e a possibilidade de um voo anuncia-se. Ao longo da narrativa o leitor acompanhará a trajetória interior dessa mulher que desdobra a memória como possibilidade de ressignificação da existência. Nesse processo comparecem os avós, os pais, as casas da infância, brinquedos e, entre eles, os livros, uma biblioteca assemelhada à biblioteca-mundo de Borges, imortalizada no conto “A biblioteca de babel”.Contraposto ao passado revisitado, o presente sempre às voltas com as paredes brancas, os leitos de hospital, as luvas cirúrgicas. Eilá parece às voltas com não só com a própria, mas com a sobrevivência coletiva. As figuras mágicas de Eudora-Pandora e Iriê-Atiá assombram a narrativa apontando para uma (im)possível reconexão com a natureza, numa ambígua solução, metaforizada na imagem de gêmeos siameses, um vivo e outro morto: “unidos até a raiz dos cabelos e presos pelos vasos de sangue às vísceras da mãe. a placenta de ambos, aderida ao mesentério, nutria um de sim e outro não”.Num mundo assombrado pela pandemia de COVID-19, a situação-limite, a iminência do salto da janela e da vida, torna-se uma alegoria com a qual a sensibilidade poética de Dani Rodrigues nos apresenta uma narrativa intensa, rigorosa, na medida em que dimensiona a existência humana no trânsito entre o espaço da saúde coletiva e a biblioteca, ou a parede branca coalhada de letras. É curioso, mas ambos os espaços contrapõem-se na dinâmica entre preservação e esquecimento, vida e morte, palavra e silêncio.Há para o leitor uma terceira via, a percepção do romance pelo contato tátil com a pele oculta das vogais. Aqui o inteligível dá lugar ao sensível. Nesse mundo, dos limites e dos sentidos embotados, há também palavras. Seguremo-nos nelas.

  • Rapace

    Rapace, o livro de estréia de André Capilé é jogo matreiro de linguagem. Rapina de aves que se arrogam o direito e o dever de entortar o apaziguado estar do sujeito bem posto, do homem de bem. Rapinar é repaginar a vida reentrar nas novas diretrizes da poesia brasileira. Os poemas do livro travam uma briga com determinadas facilidades, uma programação de fossos de leitura ou corrida com barreiras, que obriga a atenção detida, na medida em que é necessário olhar/ouvir mais de uma vez. O autor comenta: “rapace, com sorte, pode ser visto como livro-manifesto.” De fato os poemas apontam para uma gama variada de cenas que desmentem certas questões da crítica contemporânea de poesia, como a que afirma que projetos coletivos são impraticáveis; que a questão do “nacional” não é um problema; que há despolitização e alienação. Ser brasileiro, sim, é dado; mas o Brasil ainda é uma questão, cada vez mais, discutível. De qual Brasil falamos, quando falamos Brasil?”, provoca o autor.

  • Memórias de uma moça malcomportada

    Este livro não é um romance, nem mesmo uma biografia, e sim um detalhado relato, na forma de contos, das experiências vividas por uma moça malcomportada. Repleto de fatos de como a mulher é aprisionada desde a infância no que a sociedade considera normal e correto, mas sempre do ponto de vista masculino. Desde pequena, a autora constatou os dois lados do comportamento esperado de uma jovem: comportado e malcomportado. Das moças eram esperadas três situações: o casamento, uma profissão feminina ou continuar a ser “do lar”. Foram o inconformismo e a revolta contra esses padrões impostos então (e ainda hoje) que a tornaram uma “moça malcomportada”. Dentre os obstáculos que experimentou, já na entrada de sua vida adulta, consta um estrondoso processo, como professora da Universidade Federal de Juiz de Fora, por introduzir o método científico no ensino de Sociologia e Antropologia, contrariando os conceitos antiquados e doutrinários, de base religiosa, até então ministrados aos alunos. Seu constante posicionamento como professora e sua luta pela igualdade social da população motivaram sua expulsão da vida acadêmica pelo Ato Institucional AI-5 da Ditadura Militar, em 1969, levando-a ao exílio em Paris, a conhecer o mundo e conviver com os intelectuais mais importantes das décadas de 1960/70. Acervo que utilizou, na volta ao Brasil, para dirigir e criar instituições e fazer avançar o ensino e a pesquisa em alto nível, notadamente nas ciências sociais e humanas. No que se refere à autora deste livro, os “bem-comportados” não conseguiram realizar seus objetivos como certamente Maria Andréa, com o humor que a caracteriza, nos contará nos próximos volumes de suas memórias. Como escreveu a historiadora norte americana L. T. Ulrich, em 1976: “Mulheres bem-comportadas não fazem história”. Maria Andréa fez e continua fazendo.

  • Chabu

    Chabu é madeira de lei da cara de pau das relações comezinhas, de si e com outros, no tabuleiro posto dos amores falidos e peças caídas. Convite a virar o jogo, não só da vida mas da expressão poética. De tanto dar chabu vão se descobrindo as possibilidades do dizer, do desfluir das água claras que se espantam com qualquer turbilhão de movimento quando vem de lá da poesia.

  • Ilhas-de-não

    Neste novo livro de Oswaldo Martins, a língua se dirige para o silêncio, mas seu destino é o excesso do grito. Aqui, o desconforto é o ritmo mais forte e atua como uma torrente que se encarrega de nos reposicionar no nosso cansaço. Abrindo-se num descantar incessante numa “língua prenhe de abismos”, este volume todo é um desafogar que pede, antes de mais nada, uma leitura em voz alta. Modelando-se, assim, um suposto delírio, entra pelos ouvidos a voz de uma desrazão que não parece nada louca, no final. Com mínima pontuação, sem métrica fixa, com versos em minúsculas e sem rimas, ilhas-de-não instala em compostos hifenados e em intervalos por travessões ímãs onde se pode respirar – fundo. Mas esses são alentos curtos em oásis. Este livro quer tudo, menos nos distrair e nos fazer descansar. Dando continuidade à sua trajetória de escritor, em que é classificado, entre outras definições, como poeta erótico, Oswaldo conduz sua reação perturbadora a critérios de existência e de beleza simplificados e tradicionais estendendo-a agora contra os “deuses canalhas” e não contra um único responsável. Nessa estratégia, sente-se um gosto nítido pelo bater sonoro, vê-se um trabalho de reverberação interna em que as seções do livro se contorcem juntas num formato de marota e provocadora desrealização. Há conversas de vermes por toda parte e, por entre as fendas, orfeu e eurídices se insinuam mortos. Há boas confusões literárias. Há “ismael desterrado do oceano no arará” e a secura do mar que reaparece viva em alguns momentos, como é caso do poema “shoji”, extraordinário. Há vermes por toda parte. Vicente Celestino e Machado de Assis e Langston Hughes e Pedro Kilkerry estão aqui para não nos deixar esquecer. Quem acompanha a produção de Oswaldo, que tem mais de dez livros de poesia publicados, encontra nesta “ilha em negativo”, nessa “ilha da negação” que ele agora retoca, notícias de devastações que não são novidade. Mas é por elas que o pó das nossas bibliotecas corroídas desencanta as odes em forma de “o”s. O de ode, oh de dor, O de vazio, o de odor. Há, sim, vermes por toda parte. Isso pode nos fazer gritar. Mas cada um destes poemas vai exigir muito mais de nós, diante dessas páginas arruinadas de história.

  • Tecido invisível

    Tecido invisível é, antes de tudo, um livro afirmativo, positivo, o que o torna sempre necessário, mas principalmente em tempos sombrios como os atuais, de adoecimento e de distanciamento social, mesmo depois das exigências da segurança sanitária que vivemos na recente pandemia. Os poemas levantam-se contra esse tempo por meio da memória e da experiência da vida, mas da vida mesmo, sem mediações. A única rede que nos unia para prorrogar o tempo/ era feita de fios de ovos/ pão com manteiga, discursos e versos/ sem zap, sem face, sem insta, sem fone/ e nenhuma vergonha / de ser o que se é/só fome de afeto/ confidências com café, diz o poema “Confidências”, estabelecendo bem a medida da potência dos versos de Vilma Costa. Assim, o tecido invisível que permeia os poemas é o mesmo que elabora nossa vida, nossos sonhos, desejos, perdas e conquistas. É a matéria sutil que respiramos cotidianamente, sem mesmo nos darmos conta. É o sentido que nos equilibra e nos faz dispostos a dizer sim para o que der e vier. E seguir, porque simplesmente vivemos, e isso pode ser lúdico, prazeroso e festivo. Mas para que essa consciência seja possível, há que se ter militância. Não é fácil, nem simples, nem natural. Vilma Costa está consciente dessa dificuldade e milita, em seus versos, pela afirmação radical da vida. Para isso, a poeta maneja a linguagem na direção da acessibilidade, da comunicação direta e sensível, do encontro e da comunhão.