Abnegação é o terceiro livro de Elesbão Ribeiro. Como em seus outros dois livros anteriores, Estação Piedade e Namorada Anarquista, perpassam os ecos de um mundo em ruínas ao qual o poeta busca dar ordem. Se em Estação e em Namorada verifica-se a presença de uma dicção coloquial, na linguagem mesclada de um português que se dá entre o castiço de Portugal e a inovação do brasileiro; em Abnegação, a língua ganha outros matizes. A língua é o lugar em que as tradições se mantêm e ao mesmo tempo se renovam, é o local em que os sentidos se inovam e se constituem; espaço privilegiado, quando se dá na percepção do poético, a língua é capaz de causar tanto a aproximação com o sublime quanto penetrar no cotidiano mais terra-a-terra da vida comum.
Categoria: Livros
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A demência do tempo
O subtítulo de A demência do tempo deve ser visto com atenção pelos leitores: Memórias da pandemia. Aqui, a memória de um tempo recente e nefasto não está muito longe do diário, como Um diário do ano da peste, de Defoe, que comparece em uma das epígrafes. Lúcio Autran, ao escolher apresentar como memória seus poemas sobre os anos brasileiros da pandemia de COVID-19, demarca o lugar do sobrevivente e o sentimento ambíguo entre a vida e o luto. Infere-se, no entanto, em alguns versos, que a distância temporal que pressupõe o discurso memorialístico fica comprometida pela proximidade do cotidiano que se coloca como desafio à palavra poética. Dessa forma, o subtítulo indica que a memória é metáfora da percepção cotidiana que o poeta traz à tona, como primeiro tema do livro – O TEMPO. Essa metáfora desloca-se, em seguida, pela nuclearidade que é dada ao substantivo DEMÊNCIA. Sintomaticamente, ao longo dos poemas, esse núcleo torna-se adjetivo – demente, condição humana de supressão da mente, que se aloca no tempo por meio da alusão sistemática a um ser nomeado e inominado, porque inominável. Os poemas de Lúcio Autran transmutam o sentimento de dor e luto da pandemia em um grito de indignação. Assumem uma posição política precisa e necessária que recoloca o valor da vida pública. Nos anos de pandemia, viveu-se, no Brasil, uma das mais graves crises éticas de nossa história. É nesse ponto que se compreende a perfeição do deslocamento do diário para a memória, construído pelo poeta. Do diário para a memória recoloca-se na medida do tempo histórico o absurdo de nossa vida política. É um gesto que deixa em duas das funções da poética horaciana – a do ensinar e do comover – a fruição do asco, único deleite possível diante dos dementes que assumiram o poder no Brasil da pandemia.
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Namorada anarquista
O livro Namorada anarquista e outros poemas elabora personagens que transitam por imaginoso e imaginário medievalismo contemporâ neo. Poderes da bruxa e da nobreza presidem à busca de beleza e felicidade de rostos e máscaras. Por entre um burguês em primeira pessoa e os poderes da anarquista namorada que viria das manifestações das ruas de metrópoles em junho de 2013, mas sem que se reduza a datas, aparecem, noutras partes, um discípulo imberbe, o seu (padre) mestre, a diarista portuguesa. Figuram aí, também, saídos de humoradas releituras, Taoísmo, Machado de Assis, Manuel Bandeira, Gregório de Matos e o monge trapista Thomas Merton. Pisando em ovos para abordar diretamente junho de 2013, o poeta compositor Gilberto Gil lembra “o grande líder chinês” que, perguntado sobre a Revolução Francesa, disse: “Ela é muito recente, não sei ainda o que dizer sobre ela”. Com a publicação de Namorada anarquista e outros poemas, o poeta e contista Elesbão Ribeiro sugere procurar reinventar o eu, a partir dessa fala feminina, nomeada (namorada), e marcada por um comportamento (anarquista) menos político do que afetivo.
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Mosaico
Como é a vida de crianças assistidas na terapia intensiva? Neste livro, Roberta Tanabe parte de sua experiência profissional, dos anos dedicados à terapia intensiva pediátrica, para compor um mosaico de histórias, constituídas por diferentes vozes. Estão presentes as crianças, com sua interação curiosa com as máquinas e os profissionais que as cercam; os familiares, que vivem o drama de recalcular as expectativas sobre a infância de seus pequeninos tão desejados (ou não), diante das agruras de genes, infecções e acidentes que estão no destino e transformam a percepção de o que pode ser criar um filho; finalmente, comparecem as vozes dos profissionais de saúde, que expõem o conflito das emoções vividas no limite do conhecimento técnico e racional. A imagem do mosaico persiste na ideia de que, o todo, formado por fragmentos instáveis e precários, também é instável e precário. Não há que se crer na grande obra, se ela não é capaz de redimensionar, à sensibilidade dos leitores, a existência e o estar no mundo. Dessa forma, este Mosaico, de Roberta Tanabe, é um belo exemplar de grande arte. Conduz o leitor para além da experiência do relato imediatista sobre o cotidiano hospitalar e nos apresenta a dimensão desse todo, instável e precário. Como observa Martha Moreira, no prefácio, o livro nos coloca diante do “lugar que as crônicas podem ocupar na vida humana”. A maneira tênue e delicada com que as histórias, ou os fragmentos desse mosaico, se entrecruzam e se comunicam, no conjunto, aponta para uma arte de criação que compartilha com o leitor direções para a recomposição, a reinterpretação, ou, como o subtítulo deixa claro, a reinvenção da vida, o que a torna plural, múltipla e inteira.
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Estação Piedade
Estação piedade é um livro de poemas com a intensidade e a presença de uma sala de cinema. Traz o frescor de um olhar não condicionado sobre diversos temas, como o corpo, o amor, o tempo, a cidade, a religião, em versos bem medidos, enxutos, que criam uma expectativa no leitor que deriva do caldo cultural que perpassa a experiência urbana nestes últimos quarenta anos. Os poemas, como quadros de um filme sucedem-se em histórias, desde os cinemas dos bairros que se transformaram em templos religiosos às festas populares como a celebração de Cosme e Damião. O sotaque pisca o olho para a herança portuguesa, mas convive habilmente com a boa malandragem, nos seus recantos mais sutis da linguagem. Assim, as percepções da alma e do corpo, sobretudo o feminino, se entregam a uma aguda sondagem da presença, na poesia, de uma especificidade tanto corrente quanto inusitada. O bom negro, o bom branco e o bom sotaque d’além-mar, em Estação piedade, gingam no corpo das belas mulheres, no olhar deste poeta surpreendente.
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Copacabana e outros subúrbios
Nos 13 contos que Alexandre Faria reúne neste livro, a densa experiência urbana de personagens à deriva, em busca de respostas para os acasos do existir, é pontuada pela sensível costura de narrativas ora psicológicas ora fantásticas, que não cedem facilmente à representação realista da cidade. Num passeio oscilante, como as curvas taoistas do calçadão de Copacabana, o leitor será conduzido pelas delícias e misérias dos dramas humanos em narrativas que não deixam de dar humor e leveza aos problemas. O conjunto compõe um painel de histórias em que o famoso bairro carioca, cenário de alguns contos, mas não de todos, transforma-se em metáfora cosmopolita de um tempo complexo e desafiador como o nosso.
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O retorno de Homero à Cidade
Se n’A República, Platão expulsa o poeta, isto é, o artista, ele retorna em diferentes simulacros à Pólis, pois a arte sempre está na profanação e na renovação de cada palavra, mediante a renovação de cada palavra. Repetição contínua e descontínua, beirando os limiares históricos e filosóficos, como podemos sempre afirmar: transfiguração do fato artístico. Fato de linguagem, em suma. Iluminação e cegueira portam algo que se transforma, indo além do seio linguístico e sendo atravessado pelo histórico, político, cultural e econômico. Essa coisa que presenciamos obscura e profundamente. Uma manifestação artística que se ilumina e se obscurece na presença de outras artes. Dificilmente, conseguimos testemunhar a mitologia do autor, ou seja, o momento seminal da criação, recolhemos a obra e sua linguagem, a que insiste em falar e insiste em escamotear os sentidos, sem o absurdo do cotidiano, que tenta ser claro, mas também falha. Só a morte provoca novos nascimentos e retornos. A palavra não basta. Assim, o prestígio e o status da figura do autor tergiversam o centro da obra; logo, o circuito dos signos verbais e não verbais encena os rodopios. E a linguagem se recusa fazer e dizer tudo o que pode. Ou deve… Como Luiz Fernando e Serge Margel, na apresentação de O retorno de Homero à Cidade, declaram: “Este livro é uma homenagem a Michel Deguy e a Jean-Luc Nancy, dois preciosos amigos que nos deixaram recentemente. Um e outro consagraram suas vidas a escrever sobre os vínculos complexos e ambíguos entre poesia e filosofia.” Saber e memória nos conduzem ao profundo e abissal de desejo de escrita, como se o corpo em direção ao fundo se revestisse de signos que boiam. Sim, desejo de escrita como um jogo do indizível; isso é certo tipo de exterioridade da razão.
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Poesia reunida
Carlos Augusto Corrêa é poeta carioca nascido em 1948. Este livro reúne toda a sua poesia, produzida entre 1977 e 2022. Incorpora títulos publicados em coletivas e de pequenas tiragens, como Elegia sem posse (1987), Junção (1979) e Uma palavra no dia (1977) e e outros inéditos, como De corpo e (c)alma (1999) e Poemas esparsos (2000). Além disso reedita duas obras-primas da poesia brasileira Orgia do escuro (2000) e Terra presente (1992). O volume também contém o livro de poemas eróticos Canto e gozo (2022), lançado originalmente pela Editora TextoTerritório. O movimento proposto pelo poeta, além de inusual nas louvações costumeiras da poesia e dos poetas, permite ao leitor uma abordagem densa da poesia imiscuída de vida; da vida que se embebeda de sarjetas, de esperma e gozo, de trabalho, que vai ao âmago do próprio viver e cria um amalgama forte, cristalino e provocador seja da poesia, seja da vida, ou de um modo de vivê-la.
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Sutur
Em Sutur, o poeta Cândido Rolim apresenta, para além da acuidade com que enxerga a realidade, uma densidade cujo desdobramento se dá na forma com que trabalha seus poemas. O modo de operação dos poemas vai se construindo aos poucos, complementando ao longo de todo o livro esse primário dizer que faz com que a poesia de Cândido Rolim se mostre necessária e pulsante frente a este mundo de construções falseadoras do real, por ele, mundo, se contentar com a repetição do mesmo. Se o mundo opera com o preenchimento dos vazios pela positividade dos sentidos, a falta desta positividade, em Rolim, pressupõe seu preenchimento a partir dos desdobramentos dos vazios em mais vazios; como os móbiles de Calder, a construção da poesia de Sutur se mostra na configuração do momento de leitura. O que, aliás, é mais do que necessário no panorama da literatura contemporânea.
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Mar Salgado
O novo livro de Elesbão Ribeiro, Mar salgado, traz a inconteste assinatura de seu autor. Elesbão vem publicando com frequência desde o ano de 2013, quando estreou com Estação piedade. Sua obra, ao longo destes dez anos, a cada novo livro, a cada novo poema, a cada verso, vem admirando seus antigos leitores e conquistando outros tantos. A dicção de Elesbão Ribeiro é feita de sutilezas e de uma grande dose de simpatia por seus personagens, geralmente gente humilde, sem arroubos; da ordem do cotidiano o poeta extrai, não só sua educação sentimental, como a percepção das pessoas marcadas pela sensibilidade para com os fatos diversos e comezinhos do mundo. Como se não bastasse, esta extração se dá através do mergulho nos poemas e músicas de sua predileção e da transformação deles em obra própria. A transfiguração operada transforma os Pessoas, os fadistas, o Sr. José Saramago em Elesbão Ribeiro. Este mergulho na persona do poeta é uma das muitas delícias que este Mar salgado nos traz. Sugerimos que o leitor experimente mergulhar neste livro como quem assiste a um filme. A cena inicial “edipiana” antecipa o título e os créditos e constrói traços precisos do herói português anti-camoniano, que enfrenta seu desenraizamento entre os despojos simbólicos das armas e dos barões e as pequenas criaturas que vão dando um jeito de viver com graça nos subúrbios da ex-colônia. É deste lugar híbrido, sem saber se “um dia embarcamos/ ou se ainda continuo sentado/ na pedra daquele rio de onde/ deveria ter partido pra américa”, que o poeta penteia seus versos, por uma gente humilde e simples, que, mais que vida, tem biografia.