Alexandre Faria, um personagem que na ficção do romance tem o mesmo nome do autor verdadeiro, desaparece e apaga todos os dados do seu computador. Nilton, seu editor, encontra na lixeira os pedaços rasgados do que seria o último livro do autor, um romance policial. A narrativa propõe a montagem desses fragmentos. Num engenhoso jogo de espelhamentos, segmentos narrativos aparentemente desconexos vão se completando e revelando uma intrigante trama que mistura ironicamente elementos da violência urbana, do suspense e dos principais ingredientes de trama policial, com momentos de profundo lirismo e reflexão existencial. Uma experiência de leitura única, em que o leitor será tomado pela vertigem do abismo em que o próprio narrador se encontra, desde a experiência delirante da internação no que parece ser um sanatório para doentes mentais até a suspeição final de que, por ciúmes, o autor tenha sido assassinado pelo próprio editor.
Categoria: Romance
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De volta ao carrossel
De volta ao carrossel reúne histórias de vidas cruzadas em uma cidade grande atravessada por amores intempestivos, balas perdidas, infâncias roubadas, crime e castigos, desejos e sentidos conflituosos em cada beco, em cada esquina. Um prólogo antecipa a apresentação das principais personagens envolvidas, de diferentes formas, na efervescência das manifestações de junho de 2013, uns no meio do fogaréu, outros assistindo, perplexos, às notícias da grande mídia. Enquanto estrutura, o romance possui duas partes. A primeira, contextualizada nos idos de 1980, quando o Brasil ainda vivia sob a sombra da Ditadura Militar, mas cheio de esperança na promessa de uma ampla democracia. A personagem principal é a Vila, Vila Kennedy, Rio de Janeiro, Brasil. É ela que se encarrega de traçar o seu perfil através das histórias de seus pobres amantes, que experimentavam a vida de nervos expostos à “dor e à delícia de ser”. Relatos do cotidiano, casos, episódios: realidade tão crua que parece mentira, mentiras tão bem contadas que parecem verdades. A segunda parte, contextualizada depois de mais de trinta anos, encontra alguns personagens já crescidos e outros envelhecidos na busca de sentidos para a própria vida, sentidos parciais, precários, mas necessários para seguir adiante. As narrativas nos chegam através de Ritinha, agora adulta, movida pela necessidade de voltar à Vila, “subir mais uma vez no carrossel, observar tudo com novo olhar”. Talvez, reconciliar-se com um passado perdido. É um retorno com muitos perigos a uma Vila dominada pelo tráfico e pelo abandono dos governantes. Sua mãe Vera, tio Carlos e a amiga Conceição, sob seus próprios pontos de vista, preenchem as linhas que vão se entrelaçando e alinhavando um tecido fluido, de fios narrativos múltiplos, polifônicos e ávidos de reencontros, que nem sempre se realizam, mas sobrevivem enquanto esperança de chegar a algum lugar…tão perto, tão longe, imprevisível, inverossímil como a vida dos que até aqui ainda sonham.
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Há um colete salva-vidas embaixo do seu assento
Uma hipótese: se todos usassem a ironia como forma de comunicação, haveria um colapso linguístico no mundo, daí talvez o uso do colete salva-vidas, que está embaixo do assento. Mas que assento? Parece-me que o assento do livro de viagem, onde a viagem seja o livro (para aproveitar a epígrafe de Haroldo de Campos): lá estaria o colete salva-vidas. Mas o que a ironia tem a ver com o uso de colete salva-vidas em Há um colete salva-vidas embaixo do seu assento, de Ana Paula El-Jaick? A ironia talvez “salve” o leitor e a própria escritora de estar escrevendo apenas um diário de viagem e transforme esse “livro de viagens” em um livro sobre livros e diários de viagens. A ironia, e digo também o humor que atravessa o livro, nos salvam de ficar olhando todas aquelas fotos de viagem que Ana, a personagem, fez em Paris – 1.257 fotografias de Paris com Ana no fundo de cada uma das 1.257 fotografias em Paris. Que alívio. A prática, ou procedimento, é colocar a Ana escritora em situações possíveis da Ana viajante e, por meio da ironia e do humor, borrar os limites entre real e ficção, o que a crítica chama de autoficção. Talvez – essa é outra hipótese – Ana vá além, borrando inclusive o estatuto da autoficção. Por isso, eu gosto de pensar Há um colete salva-vidas embaixo do seu assento em antidiário: que tudo, ou quase tudo, que ali está escrito seja mesmo verdade, mas outra vez a lembrança de que há um “colete salva-vidas embaixo do assento” nos livre das verdades e nos faça divertir, identificarmo-nos com as aventuras amorosas e acadêmicas da personagem, “curtir” sua melancolia, ter saudade junto com ela, enfim, viajar junto com Ana em Paris. Talvez Ana escreva mesmo um antidiário – numa linguagem que incorpora procedimentos que não são diarísticos – e, antes de se virar obsessivamente para a personagem, deixe entrar outros personagens, escrevendo, não importa o tipo textual aí performado, uma história, que nos prende ali do começo ao fim, esperando que ela volte logo para casa, já que as viagens se tornam viagens quando voltamos. De todo modo, em algum momento, você pode fazer o uso do colete salva-vidas e ler a história boiando, ou numa piscina ou no meio do Oceano Atlântico.
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Davi
Davi é “gestado num útero impossível, feito de vogais e consoantes. Como num pesadelo. Nos limites desse sonho há a vida de um embrião, pulsando rápido como todos os seres nascentes. Rápido como uma estrela de nêutrons, uma estrela muito velha. Nesse tipo de estrela, pequena e densa, quanto mais ao centro, mais rápido é o seu giro.”
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A pele oculta das vogais
Eilá está diante de uma janela sem grades do sétimo andar e a possibilidade de um voo anuncia-se. Ao longo da narrativa o leitor acompanhará a trajetória interior dessa mulher que desdobra a memória como possibilidade de ressignificação da existência. Nesse processo comparecem os avós, os pais, as casas da infância, brinquedos e, entre eles, os livros, uma biblioteca assemelhada à biblioteca-mundo de Borges, imortalizada no conto “A biblioteca de babel”.Contraposto ao passado revisitado, o presente sempre às voltas com as paredes brancas, os leitos de hospital, as luvas cirúrgicas. Eilá parece às voltas com não só com a própria, mas com a sobrevivência coletiva. As figuras mágicas de Eudora-Pandora e Iriê-Atiá assombram a narrativa apontando para uma (im)possível reconexão com a natureza, numa ambígua solução, metaforizada na imagem de gêmeos siameses, um vivo e outro morto: “unidos até a raiz dos cabelos e presos pelos vasos de sangue às vísceras da mãe. a placenta de ambos, aderida ao mesentério, nutria um de sim e outro não”.Num mundo assombrado pela pandemia de COVID-19, a situação-limite, a iminência do salto da janela e da vida, torna-se uma alegoria com a qual a sensibilidade poética de Dani Rodrigues nos apresenta uma narrativa intensa, rigorosa, na medida em que dimensiona a existência humana no trânsito entre o espaço da saúde coletiva e a biblioteca, ou a parede branca coalhada de letras. É curioso, mas ambos os espaços contrapõem-se na dinâmica entre preservação e esquecimento, vida e morte, palavra e silêncio.Há para o leitor uma terceira via, a percepção do romance pelo contato tátil com a pele oculta das vogais. Aqui o inteligível dá lugar ao sensível. Nesse mundo, dos limites e dos sentidos embotados, há também palavras. Seguremo-nos nelas.