Em amar-o-tempo, o próprio título – definido por um jogo semântico – revela a abrangência do motivo que percorre os onze núcleos temáticos que lhe são intrínsecos. Em verdade, sempre em fuga e escorregadio, do tempo nada sabemos, além do misterioso sumidouro que o torna símbolo de tudo e eixo da escrita dessa obra. Por isso, em cada verso, o sentimento convidou Rute Gusmão a cantar a existência nos seus mais variados perfis diante da marcha do tempo. Numa perfeita adequação, a autora escolheu epígrafes para apresentação dos núcleos temáticos, mas o poema intitulado “Precisas ver-te” – posicionado na abertura do referido livro – faz-se epígrafe perfeita em diálogo com o todo dos poemas, porque capta a ambiguidade da vida a partir do primeiro verso: “Um dia as roupas vestem quem não és”. Rute Gusmão tematiza o sentimento do tempo em sua raiz, e tal raiz segue o eterno movimento da evasão do presente lançando uma pergunta: E depois? Na impossibilidade de registrar aqui todos os elos que enlaçam o tempo nessa obra, passo a um fragmento do poema intitulado “Não dito”, escolhido como fecho do livro, e também confirmação da inviabilidade do saber e ou do falar do tempo no plano da comunicação efetiva. Eis o que nos diz a autora, como se, no desdobramento do título do livro, pressentisse e acolhesse o estado d’alma do eu poético: “E trouxe o sentimento submerso / inteiro à tona do verso”. Ao particularizar a ressonância do verso, Rute Gusmão realizou a difícil tarefa de ultrapassar o dizer próprio do idioma, para alcançar o não dito e captar o tempo através da poiesis: única forma de vivenciá-lo no plano existencial. Em amar-o-tempo, o verbo e o adjetivo abandonam suas respectivas classes de palavras e se transformam em matéria prima da poesia. E, numa desconstrução do passado e do futuro, o tempo veste ambígua máscara de um daimon lírico e induz o leitor a participar do devir. (Mirian de Carvalho)
Categoria: Livros
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De volta ao carrossel
De volta ao carrossel reúne histórias de vidas cruzadas em uma cidade grande atravessada por amores intempestivos, balas perdidas, infâncias roubadas, crime e castigos, desejos e sentidos conflituosos em cada beco, em cada esquina. Um prólogo antecipa a apresentação das principais personagens envolvidas, de diferentes formas, na efervescência das manifestações de junho de 2013, uns no meio do fogaréu, outros assistindo, perplexos, às notícias da grande mídia. Enquanto estrutura, o romance possui duas partes. A primeira, contextualizada nos idos de 1980, quando o Brasil ainda vivia sob a sombra da Ditadura Militar, mas cheio de esperança na promessa de uma ampla democracia. A personagem principal é a Vila, Vila Kennedy, Rio de Janeiro, Brasil. É ela que se encarrega de traçar o seu perfil através das histórias de seus pobres amantes, que experimentavam a vida de nervos expostos à “dor e à delícia de ser”. Relatos do cotidiano, casos, episódios: realidade tão crua que parece mentira, mentiras tão bem contadas que parecem verdades. A segunda parte, contextualizada depois de mais de trinta anos, encontra alguns personagens já crescidos e outros envelhecidos na busca de sentidos para a própria vida, sentidos parciais, precários, mas necessários para seguir adiante. As narrativas nos chegam através de Ritinha, agora adulta, movida pela necessidade de voltar à Vila, “subir mais uma vez no carrossel, observar tudo com novo olhar”. Talvez, reconciliar-se com um passado perdido. É um retorno com muitos perigos a uma Vila dominada pelo tráfico e pelo abandono dos governantes. Sua mãe Vera, tio Carlos e a amiga Conceição, sob seus próprios pontos de vista, preenchem as linhas que vão se entrelaçando e alinhavando um tecido fluido, de fios narrativos múltiplos, polifônicos e ávidos de reencontros, que nem sempre se realizam, mas sobrevivem enquanto esperança de chegar a algum lugar…tão perto, tão longe, imprevisível, inverossímil como a vida dos que até aqui ainda sonham.
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De outros carnavais
Cada vez mais, o ensino e o estudo da literatura, no sentido profundo de criação artística, associam-se à prática da escrita. Num período histórico marcado pela vertiginosa proliferação de ideias, teorias e informações, é o exercício permanente da atividade criativa que funciona como foco iluminador não só dos saberes específicos das letras, mas também de suas possibilidades de conexão com outros setores da cultura. Vivemos em nosso tempo um processo de conquista democrática da palavra literária. A vontade de escrever é vivida como direito e necessidade subjetiva. A oficina de criação literária assume assim um lugar destacado entre as atividades universitárias, e é nessa linha que Paulo Henriques Britto trabalha com seus alunos e alunas no Programa de Produção Textual do Departamento de Letras da PUC-Rio. Este volume nos traz o resultado obtido. Nesta Oficina, como não poderia deixar de ser, a criação é estimulada pela leitura de clássicos brasileiros, em torno de um eixo temático – o carnaval. A partir deles, foram elaborados os contos aqui apresentados. Neles, observamos algumas características marcantes do “conto de carnaval”, que de certa forma podemos considerar um gênero bem brasileiro, contrastando, por exemplo, com os “contos de Natal” universais. Como se pode ver aqui, um gênero bem carioca. Saltam à vista nestes contos algumas marcas da tradição do gênero: a presença da experiência do carnaval na vida familiar e social, os elementos de surpresa que acontecem no exercício da folia e sobretudo a experiência, na maioria destas estórias, do percurso urbano, a fusão entre corpo e cidade. É assim que se retoma e se leva adiante o exercício da ficção como testemunho de vida
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Agóleo
Misturando prosa e verso, Agóleo: um romance instagrâmico remonta a história do Brasil, em especial a do Rio de Janeiro, a partir das relações entre o crime organizado e o poder político. A narrativa parte de Inácia Nonata, uma narradora não nascida, que recria a história de seu avô Simão, um sindicalista preso pela ditadura militar no início dos anos 1970, e de sua avó Maria, que criou sozinha Aparecida, sua filha com Simão. Aparecida suicida-se em 1992, o que impede o nascimento da narradora. A história monta-se em blocos, apresentados como Reels do Instagram, que marcam os principais episódios. Entre eles, uma série de poemas levam a refletir sobre a situação e pensar saídas de superação para os impasses da desigualdade no Brasil. Eletrizante! Uma experiência de leitura vigorosa e única!
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Várzea das moças
Várzea das moças confirma as sutilezas nas quais o autor investe com maestria. Pouco ou nada se diz do muito que se diz. O poeta esconde até o limite do inefável as anotações amorosas a saltarem à sensibilidade do leitor, que deve, ao longo da leitura, escolher a medida exata e tênue que escorre pelos versos deste livro. Os enlaces amorosos, como nos ensinam os mestres da escrita, sempre se mostram inconclusos, desde as desventuradas canções do medievo passando pelas idealizações do renascimento em que Amor arde em fogo que não se vê e se espraiam pela sensibilidade moderna na qual amor se reconstrói em outros parâmetros, até desembocarem no poeta contemporâneo. Elesbão Ribeiro toma para si a presença deste amor que soa ao leitor como algo que não se presentifica, que sempre se adia.
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Antologia poética
Essa antologia, feita pelo próprio poeta, é a melhor porta de entrada para conhecer uma das vozes mais inquietantes da posia brasileira contemporânea, pois reune o mel do melhor dos poemas e letras de canções de Rogério Batalha. Há amostras de seus livros mais reconhecidos pelo público e pela crítica, entre eles o recente Rosa mareada. A antologia conta também com um vasto panorama de letras em parcerias com diversos compositores (Moacyr Luz, Pedro Luís, Gerson Conrad, Maurício Barros, Nilson Chaves, Mauro Sta Cecília, Agenor de Oliveira, entre outros) que foram interpretadas por uma infinidade de artistas renomados, incluindo Ney Matogrosso, Frejat, Nelson Sargento e Matheus Nachtergaele.
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Estranha forma de vida
Há uma verdade nada estranha e que nos atinge como um soco no estômago o livro Estranha forma de vida, de Elesbão Ribeiro. Dividido em três partes, Estranha forma de vida apresenta a percepção do autor sobre desigualdades sociais, políticas sociais equivocadas e, finalmente, sobre o triste momento atual de pandemia. Na primeira parte, Mãe gentil, o poeta coloca o dedo na ferida ao clamar “triste brasiu /sem calça / pátria ao deus dará / não és mãe gentil / tão desalmado estás”. Na segunda parte, Cidade Proibida, retrata a pobreza extrema visível nas ruas das grandes cidades: “às cinco horas / deitado / a dormir ou desacordado / de fome ou dopado /exibe na boca entreaberta / um canino solitário”. Os poemas se sucedem e um gosto amargo vai ficando na boca e cresce um sentimento de revolta. Em “desnecessidade”, a violência se revela gratuita e chocante: “estamos cansados / fracos / não nos pisem mais / com suas botas”. Na terceira parte, A Peste atinge a todos por expor uma realidade vívida e sem fim. E, principalmente, o medo presente em tudo e em todos. O medo de amar, de viver, de morrer, como em “visitas”: “um de nós sem saber / pode estar doente / e adoecer o outro”. Ao término da leitura dos poemas, fica uma sensação de pertencimento, mesmo que haja a angústia de fazer parte de uma sociedade tão desigual, maculada por ignorar os pobres e miseráveis, por não lutar contra os descalabros das instituições dominantes. Talvez a leitura dos poemas nos impulsione a enxergar a realidade nefasta em que vivemos. Livro instigante!
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Há um colete salva-vidas embaixo do seu assento
Uma hipótese: se todos usassem a ironia como forma de comunicação, haveria um colapso linguístico no mundo, daí talvez o uso do colete salva-vidas, que está embaixo do assento. Mas que assento? Parece-me que o assento do livro de viagem, onde a viagem seja o livro (para aproveitar a epígrafe de Haroldo de Campos): lá estaria o colete salva-vidas. Mas o que a ironia tem a ver com o uso de colete salva-vidas em Há um colete salva-vidas embaixo do seu assento, de Ana Paula El-Jaick? A ironia talvez “salve” o leitor e a própria escritora de estar escrevendo apenas um diário de viagem e transforme esse “livro de viagens” em um livro sobre livros e diários de viagens. A ironia, e digo também o humor que atravessa o livro, nos salvam de ficar olhando todas aquelas fotos de viagem que Ana, a personagem, fez em Paris – 1.257 fotografias de Paris com Ana no fundo de cada uma das 1.257 fotografias em Paris. Que alívio. A prática, ou procedimento, é colocar a Ana escritora em situações possíveis da Ana viajante e, por meio da ironia e do humor, borrar os limites entre real e ficção, o que a crítica chama de autoficção. Talvez – essa é outra hipótese – Ana vá além, borrando inclusive o estatuto da autoficção. Por isso, eu gosto de pensar Há um colete salva-vidas embaixo do seu assento em antidiário: que tudo, ou quase tudo, que ali está escrito seja mesmo verdade, mas outra vez a lembrança de que há um “colete salva-vidas embaixo do assento” nos livre das verdades e nos faça divertir, identificarmo-nos com as aventuras amorosas e acadêmicas da personagem, “curtir” sua melancolia, ter saudade junto com ela, enfim, viajar junto com Ana em Paris. Talvez Ana escreva mesmo um antidiário – numa linguagem que incorpora procedimentos que não são diarísticos – e, antes de se virar obsessivamente para a personagem, deixe entrar outros personagens, escrevendo, não importa o tipo textual aí performado, uma história, que nos prende ali do começo ao fim, esperando que ela volte logo para casa, já que as viagens se tornam viagens quando voltamos. De todo modo, em algum momento, você pode fazer o uso do colete salva-vidas e ler a história boiando, ou numa piscina ou no meio do Oceano Atlântico.
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Arredores
No centro dos poemas de Arredores estão “meu pai e o museu” (“foi meu pai/que pouco sabia ler/que me levou pela primeira vez/ao museu nacional”) “deste modo” (“ao perceber que nunca fui à varanda bater panelas/deixou de ser amistosa”) e “o vizinho do quinto andar” (“vi ontem no jornal/nada mais disse/repetia simplesmente”): poemas extraordinários, que começam a deixar ver com clareza o que antes apenas era o vislumbre da beleza da tarde, o doce pássaro da juventude, a transubstanciação própria da boa poesia dando-se em nesgas, frestas, elipses. É a partir sobretudo daqueles três poemas centrais que o livro se vertebra e deixa ver o que antes apenas entrevíamos: o olhar humanista do poeta compõe um todo que diz a que veio, diz onde está e diz quando é este quando no qual nos situamos: os arredores de um país em que, pensando bem, “homens de bem” talvez não o sejam sem aspas, em que o assassinato de estudantes pobres nas vielas é prioridade para as forças policiais frente aos helicópteros dos grandes traficantes, em que a masturbação de um morador de rua ultraja mais do que cortes de investimentos em educação e saúde, em que o “bicho” de Manuel Bandeira tem seu traço distintivo detectado no aparente monturo num canto de rua: “é um homem certamente/ tem na mão um pedaço de pão.”
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Canto e gozo
De um poeta, além do estro, a vida exige coragem. Fazer poesia, não é só habilidade inerente ao manejo da palavra, mas também disposição para enfrentar a existência com suas pulsões e seus limites. Por isso poeta bom nunca é poeta morto. Alguns preferem manter inéditos certos enfrentamentos; um deles, o da poesia erótica. Lembremos um famoso livro de Drummond, O amor natural, que só postumamente veio a público. O poeta maior de nosso modernismo, resguardou-se mineiramente, deixou na gaveta os poemas de um amor maduro sem saber ao certo, coitado, se foi Deus ou o Diabo que lho deu.Na TextoTerritório, orgulhamo-nos de manter no catálogo poetas vivos, sempre vivos, que nada deixam a dever aos maiores dessa tal tradição poética. Um deles, é Carlos Augusto Corrêa. O poeta, que desde os anos 70, dedica-se corajosamente ao seu ofício, brinda-nos com esse Canto e gozo, uma coleção de poemas eróticos que deverão em breve comparecer nas melhores antologias sobre o tema. Carlos demonstra que conhece, e bem, essa tradição que se monta e se desmonta, de Safo, Ovídio, Aretino ou Goethe a Bandeira, Oswald ou Vinícius.A vida que se esvai com o tempo é o que mais se quer gozar. O poeta Carlos Augusto Corrêa sabe disso, canta o corpo que se deixa decantar pelo tempo, e lança-nos no erotismo de versos que se filtram pela memória, pelo voyeurismo, pela própria luta contra a morte pela impotência e celebra a sobrevivência da língua. Com toda a ambiguidade que esse termo pode ter no contexto, este é um dos temas mais pungentes de Canto e gozo, um amor desejante e mais do que maduro, aos 70, que se reinventa em diferentes recursos e tecnologias contemporâneas, como o Viagra, os vídeos endemoninhados, a dedeira, o plug. Este livro é a vitória do gesto simples dos imortais e com ele o leitor descobrirá o quanto a poesia faz gozar e viver.