Categoria: Poesia

  • Mercado de engenhos

    Este é um livro de poesias que contém um ensaio, intitulado “Vida suspensa”. A obra, como um todo, encerra uma reflexão sobre como o corpo que respira, dissolve-se e esgota-se no fluxo das mercadorias. Trata-se dos corpos de imigrantes, negros, mulheres, LGBTTQIA+, indígenas e de todos os que ameaçam o projeto branco e neoliberal pela simples manifestação da sua alteridade.É possível que o título Mercado de engenhos leve o leitor a pensar nos engenhos de cana da época do Brasil colônia. Não estamos muito longe disso. Por trás do projeto colonial, expansionista, capitalista, há também máquinas de moer corpos, com a exploração, a escravização e o extermínio de outros povos. Mas esse livro reflete também a criatividade, a engenhosidade humana (inclusive a artística) que pode ser usada para tornar mercantilizável o nosso corpo, a nossa forma de estar no mundo. Transformamos em mercadoria tanto as pinturas de natureza-morta (em que há a exposição de um corpo vivo, flores, frutas, carnes, que acabam apodrecendo se a exposição for muito demorada), quanto técnicas de meditação (que consistem em voltar-se absoluta e unicamente para o corpo, a matéria que nos coloca no aqui e agora, num processo de esvaziamento de mente, das ideias e dos pensamentos). Essas e outras reflexões estão no livro de Alexandre Faria. que culmina na apresentação de um corpo erótico, sonoro, dançante, saída possível, transgressora, libertária e resposta inquietante às crises do mundo contemporâneo.

  • Cosmologia do impreciso

    É um desafio lúdico acompanhar as rotas traçadas por oswaldo martins em sua poesia, com intertextos que cada poema instaura, não só com a literatura, mas também com a pintura, o cinema, a música, e toda forma de arte. E isso sem hierarquizar o erudito ou o popular, o nacional ou o estrangeiro. O que coloca o poeta num lugar ideologicamente privilegiado e intelectualmente livre. Nessa arte, liberdade é fundamental, pois, para além do vasto diálogo com a cultura, o poeta também se ocupa de insuflar a inquietação dos metafísicos. A aporia que cinde o humano em corpo e espírito (seja o santo ou o das luzes) é combatida em nome da liberdade e da afirmação irrefutável da vida. Cosmologia do impreciso consagra e define a cosmovisão da poesia de oswaldo martins. Nela, a vida e a liberdade são reafirmadas através do erótico, em sua fortuitidade mais (ex-/im-)pulsiva: a buceta, sintomaticamente grafada com u, ratificando o gesto transgressor, a sedição da poesia. “Dobradura-porta/aberta ao absurdo”, como diz a “antimetafísica das apreciações”, é a buceta, mas também são os quadros e livros que “buscam/o que de buceta/são”. Trata-se de uma cosmologia, de uma “origem do mundo” digna do famoso quadro de Gustave Courbet. A imagem funda um jogo complexo em que as ideias de nascer e gozar, entrar e sair, circulam, do livro para a vida, da vida para o livro. Entre por ali, então, o leitor: pela constatação de que é entre os corpos que a vida se consuma, e que a utopia da poesia, da arte, enfim, é menos alimentar o espírito que tocar esse impreciso viver.

  • Agóleo

    Misturando prosa e verso, Agóleo: um romance instagrâmico remonta a história do Brasil, em especial a do Rio de Janeiro, a partir das relações entre o crime organizado e o poder político. A narrativa parte de Inácia Nonata, uma narradora não nascida, que recria a história de seu avô Simão, um sindicalista preso pela ditadura militar no início dos anos 1970, e de sua avó Maria, que criou sozinha Aparecida, sua filha com Simão. Aparecida suicida-se em 1992, o que impede o nascimento da narradora. A história monta-se em blocos, apresentados como Reels do Instagram, que marcam os principais episódios. Entre eles, uma série de poemas levam a refletir sobre a situação e pensar saídas de superação para os impasses da desigualdade no Brasil. Eletrizante! Uma experiência de leitura vigorosa e única!

  • Antologia poética

    Essa antologia, feita pelo próprio poeta, é a melhor porta de entrada para conhecer uma das vozes mais inquietantes da posia brasileira contemporânea, pois reune o mel do melhor dos poemas e letras de canções de Rogério Batalha. Há amostras de seus livros mais reconhecidos pelo público e pela crítica, entre eles o recente Rosa mareada. A antologia conta também com um vasto panorama de letras em parcerias com diversos compositores (Moacyr Luz, Pedro Luís, Gerson Conrad, Maurício Barros, Nilson Chaves, Mauro Sta Cecília, Agenor de Oliveira, entre outros) que foram interpretadas por uma infinidade de artistas renomados, incluindo Ney Matogrosso, Frejat, Nelson Sargento e Matheus Nachtergaele.

  • Ilhas-de-não

    Neste novo livro de Oswaldo Martins, a língua se dirige para o silêncio, mas seu destino é o excesso do grito. Aqui, o desconforto é o ritmo mais forte e atua como uma torrente que se encarrega de nos reposicionar no nosso cansaço. Abrindo-se num descantar incessante numa “língua prenhe de abismos”, este volume todo é um desafogar que pede, antes de mais nada, uma leitura em voz alta. Modelando-se, assim, um suposto delírio, entra pelos ouvidos a voz de uma desrazão que não parece nada louca, no final. Com mínima pontuação, sem métrica fixa, com versos em minúsculas e sem rimas, ilhas-de-não instala em compostos hifenados e em intervalos por travessões ímãs onde se pode respirar – fundo. Mas esses são alentos curtos em oásis. Este livro quer tudo, menos nos distrair e nos fazer descansar. Dando continuidade à sua trajetória de escritor, em que é classificado, entre outras definições, como poeta erótico, Oswaldo conduz sua reação perturbadora a critérios de existência e de beleza simplificados e tradicionais estendendo-a agora contra os “deuses canalhas” e não contra um único responsável. Nessa estratégia, sente-se um gosto nítido pelo bater sonoro, vê-se um trabalho de reverberação interna em que as seções do livro se contorcem juntas num formato de marota e provocadora desrealização. Há conversas de vermes por toda parte e, por entre as fendas, orfeu e eurídices se insinuam mortos. Há boas confusões literárias. Há “ismael desterrado do oceano no arará” e a secura do mar que reaparece viva em alguns momentos, como é caso do poema “shoji”, extraordinário. Há vermes por toda parte. Vicente Celestino e Machado de Assis e Langston Hughes e Pedro Kilkerry estão aqui para não nos deixar esquecer. Quem acompanha a produção de Oswaldo, que tem mais de dez livros de poesia publicados, encontra nesta “ilha em negativo”, nessa “ilha da negação” que ele agora retoca, notícias de devastações que não são novidade. Mas é por elas que o pó das nossas bibliotecas corroídas desencanta as odes em forma de “o”s. O de ode, oh de dor, O de vazio, o de odor. Há, sim, vermes por toda parte. Isso pode nos fazer gritar. Mas cada um destes poemas vai exigir muito mais de nós, diante dessas páginas arruinadas de história.

  • Canto e gozo

    De um poeta, além do estro, a vida exige coragem. Fazer poesia, não é só habilidade inerente ao manejo da palavra, mas também disposição para enfrentar a existência com suas pulsões e seus limites. Por isso poeta bom nunca é poeta morto. Alguns preferem manter inéditos certos enfrentamentos; um deles, o da poesia erótica. Lembremos um famoso livro de Drummond, O amor natural, que só postumamente veio a público. O poeta maior de nosso modernismo, resguardou-se mineiramente, deixou na gaveta os poemas de um amor maduro sem saber ao certo, coitado, se foi Deus ou o Diabo que lho deu.Na TextoTerritório, orgulhamo-nos de manter no catálogo poetas vivos, sempre vivos, que nada deixam a dever aos maiores dessa tal tradição poética. Um deles, é Carlos Augusto Corrêa. O poeta, que desde os anos 70, dedica-se corajosamente ao seu ofício, brinda-nos com esse Canto e gozo, uma coleção de poemas eróticos que deverão em breve comparecer nas melhores antologias sobre o tema. Carlos demonstra que conhece, e bem, essa tradição que se monta e se desmonta, de Safo, Ovídio, Aretino ou Goethe a Bandeira, Oswald ou Vinícius.A vida que se esvai com o tempo é o que mais se quer gozar. O poeta Carlos Augusto Corrêa sabe disso, canta o corpo que se deixa decantar pelo tempo, e lança-nos no erotismo de versos que se filtram pela memória, pelo voyeurismo, pela própria luta contra a morte pela impotência e celebra a sobrevivência da língua. Com toda a ambiguidade que esse termo pode ter no contexto, este é um dos temas mais pungentes de Canto e gozo, um amor desejante e mais do que maduro, aos 70, que se reinventa em diferentes recursos e tecnologias contemporâneas, como o Viagra, os vídeos endemoninhados, a dedeira, o plug. Este livro é a vitória do gesto simples dos imortais e com ele o leitor descobrirá o quanto a poesia faz gozar e viver.

  • amar-o-tempo

    Em amar-o-tempo, o próprio título – definido por um jogo semântico – revela a abrangência do motivo que percorre os onze núcleos temáticos que lhe são intrínsecos. Em verdade, sempre em fuga e escorregadio, do tempo nada sabemos, além do misterioso sumidouro que o torna símbolo de tudo e eixo da escrita dessa obra. Por isso, em cada verso, o sentimento convidou Rute Gusmão a cantar a existência nos seus mais variados perfis diante da marcha do tempo. Numa perfeita adequação, a autora escolheu epígrafes para apresentação dos núcleos temáticos, mas o poema intitulado “Precisas ver-te” – posicionado na abertura do referido livro – faz-se epígrafe perfeita em diálogo com o todo dos poemas, porque capta a ambiguidade da vida a partir do primeiro verso: “Um dia as roupas vestem quem não és”. Rute Gusmão tematiza o sentimento do tempo em sua raiz, e tal raiz segue o eterno movimento da evasão do presente lançando uma pergunta: E depois? Na impossibilidade de registrar aqui todos os elos que enlaçam o tempo nessa obra, passo a um fragmento do poema intitulado “Não dito”, escolhido como fecho do livro, e também confirmação da inviabilidade do saber e ou do falar do tempo no plano da comunicação efetiva. Eis o que nos diz a autora, como se, no desdobramento do título do livro, pressentisse e acolhesse o estado d’alma do eu poético: “E trouxe o sentimento submerso / inteiro à tona do verso”. Ao particularizar a ressonância do verso, Rute Gusmão realizou a difícil tarefa de ultrapassar o dizer próprio do idioma, para alcançar o não dito e captar o tempo através da poiesis: única forma de vivenciá-lo no plano existencial. Em amar-o-tempo, o verbo e o adjetivo abandonam suas respectivas classes de palavras e se transformam em matéria prima da poesia. E, numa desconstrução do passado e do futuro, o tempo veste ambígua máscara de um daimon lírico e induz o leitor a participar do devir. (Mirian de Carvalho)

  • Várzea das moças

    Várzea das moças confirma as sutilezas nas quais o autor investe com maestria. Pouco ou nada se diz do muito que se diz. O poeta esconde até o limite do inefável as anotações amorosas a saltarem à sensibilidade do leitor, que deve, ao longo da leitura, escolher a medida exata e tênue que escorre pelos versos deste livro. Os enlaces amorosos, como nos ensinam os mestres da escrita, sempre se mostram inconclusos, desde as desventuradas canções do medievo passando pelas idealizações do renascimento em que Amor arde em fogo que não se vê e se espraiam pela sensibilidade moderna na qual amor se reconstrói em outros parâmetros, até desembocarem no poeta contemporâneo. Elesbão Ribeiro toma para si a presença deste amor que soa ao leitor como algo que não se presentifica, que sempre se adia.

  • A demência do tempo

    O subtítulo de A demência do tempo deve ser visto com atenção pelos leitores: Memórias da pandemia. Aqui, a memória de um tempo recente e nefasto não está muito longe do diário, como Um diário do ano da peste, de Defoe, que comparece em uma das epígrafes. Lúcio Autran, ao escolher apresentar como memória seus poemas sobre os anos brasileiros da pandemia de COVID-19, demarca o lugar do sobrevivente e o sentimento ambíguo entre a vida e o luto. Infere-se, no entanto, em alguns versos, que a distância temporal que pressupõe o discurso memorialístico fica comprometida pela proximidade do cotidiano que se coloca como desafio à palavra poética. Dessa forma, o subtítulo indica que a memória é metáfora da percepção cotidiana que o poeta traz à tona, como primeiro tema do livro – O TEMPO. Essa metáfora desloca-se, em seguida, pela nuclearidade que é dada ao substantivo DEMÊNCIA. Sintomaticamente, ao longo dos poemas, esse núcleo torna-se adjetivo – demente, condição humana de supressão da mente, que se aloca no tempo por meio da alusão sistemática a um ser nomeado e inominado, porque inominável. Os poemas de Lúcio Autran transmutam o sentimento de dor e luto da pandemia em um grito de indignação. Assumem uma posição política precisa e necessária que recoloca o valor da vida pública. Nos anos de pandemia, viveu-se, no Brasil, uma das mais graves crises éticas de nossa história. É nesse ponto que se compreende a perfeição do deslocamento do diário para a memória, construído pelo poeta. Do diário para a memória recoloca-se na medida do tempo histórico o absurdo de nossa vida política. É um gesto que deixa em duas das funções da poética horaciana – a do ensinar e do comover – a fruição do asco, único deleite possível diante dos dementes que assumiram o poder no Brasil da pandemia.

  • Estranha forma de vida

    Há uma verdade nada estranha e que nos atinge como um soco no estômago o livro Estranha forma de vida, de Elesbão Ribeiro. Dividido em três partes, Estranha forma de vida apresenta a percepção do autor sobre desigualdades sociais, políticas sociais equivocadas e, finalmente, sobre o triste momento atual de pandemia. Na primeira parte, Mãe gentil, o poeta coloca o dedo na ferida ao clamar “triste brasiu /sem calça / pátria ao deus dará / não és mãe gentil / tão desalmado estás”. Na segunda parte, Cidade Proibida, retrata a pobreza extrema visível nas ruas das grandes cidades: “às cinco horas / deitado / a dormir ou desacordado / de fome ou dopado /exibe na boca entreaberta / um canino solitário”. Os poemas se sucedem e um gosto amargo vai ficando na boca e cresce um sentimento de revolta. Em “desnecessidade”, a violência se revela gratuita e chocante: “estamos cansados / fracos / não nos pisem mais / com suas botas”. Na terceira parte, A Peste atinge a todos por expor uma realidade vívida e sem fim. E, principalmente, o medo presente em tudo e em todos. O medo de amar, de viver, de morrer, como em “visitas”: “um de nós sem saber / pode estar doente / e adoecer o outro”. Ao término da leitura dos poemas, fica uma sensação de pertencimento, mesmo que haja a angústia de fazer parte de uma sociedade tão desigual, maculada por ignorar os pobres e miseráveis, por não lutar contra os descalabros das instituições dominantes. Talvez a leitura dos poemas nos impulsione a enxergar a realidade nefasta em que vivemos. Livro instigante!